XIX - O cúmulo da sensualidade




Uma das danças de que mais gostei foi O Beijo.
 
Nada do ouro voluptuoso de Klimt, nada daquela imersão quase patológica dos dois corpos um no outro. Um quadro que sempre me provocou uma espécie de náusea.
 
O nosso beijo nem sequer era uma dança de pares.
 
Filmámos essa dança ao ar livre, no sopé de uma pequena colina verdejante.
 
Não havia música, só o ruído dos pés da Maria do Mar a correr.
 
Ela marcou no chão uma grande, grande elipse, com raminhos de árvore que nunca se viram no nosso filme.
 
Nunca filmámos os pés, nem sequer o rosto de Maria do Mar.
 
O mais difícil foi montar um carril em torno da elipse, por onde a câmara pudesse correr.

A Maria do Mar corria nessa elipse com uma fita das que se usam na ginástica rítmica, para fazer desenhos no ar, uma fita branca que ela deixava voar horizontalmente, atrás do corpo que corria, mas segura pela frente.

Gravámos o som da sua respiração urgente e do restolhar das ervas sob os pés.

Queríamos também gravar o cheiro das ervas e das flores da Primavera, todo esse inebriamento que subia da terra perfumada, o cheiro do suor da pele que brilhava no sol, o cheiro do calor e o cheiro do sol.

Estávamos zonzos de estar ali, no meio do esplendor.

A Maria do Mar tinha umas leggins e um pequeno top, só para segurar o peito. E a sua pele respondia ao sol com emissões de ouro.

Corria para fazer aquela linha de velocidade e tensão que desenhava com fita cortando o ar, aquele fluxo.

Isso é que era um beijo.

No fim, esticados sobre a relva com os livros perto de nós, conversávamos.

- Lembras-te da Eudora Welty, daquela passagem sobre as peras?

- Qual?

- Quando ela diz - olha aqui (e a Maria do Mar abria as páginas): « Por instantes, com as suas mãos poderosas, Nina reteve o barco. Pensou de novo numa pêra - não nas peras do dia-a-dia, de polpa granulosa, penduradas na árvore do quintal das traseiras, mas nas peras requintadas que se vendem bem caras nos comboios, embrulhadas em cones de papel. Belas peras, simétricas, lisas, de casca fina, com uma polpa branca como a neve, tão sumarentas e tenras que, quando se trincam, salpicam a cara toda, e tão delicadas que enquanto se come a primeira metade muito depressa, a segunda escurece logo. Fugazes são os frutos, não as flores, pensou Nina - quando estão no ponto e começam a estragar-se.»

- Fugazes são os frutos, não as flores...

- Esta descrição, António, não é o cúmulo da sensualidade? É impossível conseguir mais.