XVII - Gloria - Domine Fili Unigenite





Foi uma das danças que mais trabalho burocrático nos deu. A Maria do Mar exigiu aquela fonte em frente do Mosteiro dos Jerónimos, e tinha de ser na Primavera - e a fonte tinha de ter todos os jactos de água em funcionamento, o que só acontece nos Domingos e dias de festa. Precisámos de uma autorização da câmara e da polícia de segurança pública, para limitar o espaço. Quem éramos nós?... Uns extravagantes?... Foi preciso construir, montar e articular os longos carris, em torno da amurada da fonte, por onde corria a câmara. Mas a dança era de uma simplicidade pungente, quase infantil. A Maria do Mar apenas andava sobre a amurada da fonte, os pés tão brancos como o calcário da amurada, pintados com um pó que os fazia parecer de estátua, e o plano não mostrava mais que até meio da perna, antes do joelho. Os pés andando sempre em frente e ao lado a água azul tão brilhante que não parecia do mundo, mas de um ultra-mundo. E como a câmara tinha de acompanhar a velocidade do corpo da Maria do Mar, que acompanhava a da música exactamente como um curso de água acompanha o seu leito na rocha, na areia, ou na terra, tivemos de acoplar ao seu corpo um engenho que nos deu muito trabalho a inventar, pois a câmara não podia tremer, tinha de compor uma linha, e, no entanto, seguir a Maria do Mar como se fosse parte dela, como se fosse uma mão ou um braço, como se fosse o seu estômago ou o seu peito. Os pés da Maria do Mar eram leves, eram realmente leves, pois entravam naquela linha do ritmo ternário que fazia cair o peso alternadamente em cada um dos dois pés. Um, dois, três. Um, dois, três. Direito, esquerdo, direito. Esquerdo, direito, esquerdo. Era todo um estado de graça, essa passagem pendular, subtil, que transferia de um lado para o outro lado do corpo o acento eufórico e ascendente daquela música, o punctum na linha, um faiscante estilhaço de celebração.

- Não te incomoda, a ti que não tens o Deus de uma religião, o termo «Filho Unigénito»?

Não a incomodava. O que para os outros seria uma incoerência, um problema, uma dificuldade, para a Maria do Mar pouco valia, ou não valia nada. Acima de tudo sobrepunha-se o entusiasmo, a paixão repentina e inabalável por uma visão, por um projecto, por qualquer coisa que ao seu ouvido e ao seu olho, simplesmente, batia certo.

- Ah!... - exclamava ela quando ao fim de muitas buscas encontrávamos algo que a satisfazia. - Isto bate certo!...

- Bate certo com o quê, Maria do Mar? 

Com qualquer coisa que via, parece, por dentro dos olhos. Não podia explicá-lo. Não podia descrevê-lo. Nunca sabia que chegava, antes de ter chegado. Nunca sabia se estava perto ou longe. Com que plano poderia evoluir. O que ela queria da água era aquela superfície lisa acetinada e brilhante, carregada de luz e de azul, praticamente irreal. O que ela queria da pele era aquele aspecto de continuidade entre a carne e o calcário.

- O meu deus não se incomoda com nenhum nome, porque participa de uma imensa e variada celebração. Mas que triste ter de dizer "não se incomoda". É uma expressão grosseira, demasiado humana, imperfeita e tosca, na verdade, grotesca... Porque havemos de falar do que não podemos falar?

- Gostava de perceber este Deus.

- Impossível percebê-lo. O bem e o mal são só nossos. A coerência é só nossa. O infinito é só nosso. As palavras são só nossas. A vida e a morte são só nossas. 

- Talvez prefira o deus de Espinosa ou o deus da Françoise M.

Havia três planos a compor, intervalados com a dança dos pés da Maria do Mar, mas em que a câmara seguia com a mesma velocidade, o que não foi fácil de alcançar. Um deles era um renque de flores amarelas que a câmara percorria num carril rente ao chão, num dia de muita luz. O outro era, na berma branca da calçada molhada pela chuva, de noite, essa corrente brilhante da água que corre entre o passeio e a estrada, imprevistamente colorida, aqui e ali, pelas luminescências ácidas das luzes de néon que emplumam os estabelecimentos. Tivemos de esperar pela chuva, pelas noites, pelos néons.

- A sumptuosidade da luz. 

- Como poderás sobreviver a um deus com quem não podes falar, Maria do Mar?

- O que nos destrói não são os deuses, mas os nossos defeitos de carácter. Sabes o que um dia te destruirá, meu amigo? Essa necessidade de compreender tudo, essa exigência de certezas, essa paixão pela estabilidade. Precisas de chegar a um porto seguro, mas na vida não há portos seguros que para sempre nos abriguem, como por vezes gostamos de sonhar... E a mim, também a mim, que falo agora do alto, sabes o que um dia acabará por me destruir, sem qualquer remédio?... O futuro de facto não apresenta grandes mistérios, quanto a estas questões. A mim o que um dia me deitará por terra será um só e apenas um defeito de carácter. O orgulho.

No final da dança havia um corte. Passava-se da música para o som dos jactos de água da grande fonte, esse som avassalador e total, cujos elementos mínimos, como tão bem verificou Leibniz, somos incapazes de distinguir, mas cuja totalidade nos invade talvez de um modo idêntico a como nos invadem os intervalos do vazio entre os átomos que compõem a nossa carne.

E o plano era só espuma - essa espuma.





 

XVI - Domenico e Veronique





- Aqui está. Vamos ler.

- Mostra.

- «Que antepassado fala em mim?... Não posso viver simultaneamente na minha cabeça e no meu corpo. Por isso não consigo ser apenas uma pessoa. Posso sentir-me uma infinidade de coisas ao mesmo tempo. O verdadeiro mal do nosso tempo é já não existirem grandes mestres... O caminho do nosso coração está coberto de sombra... É preciso escutar as vozes que parecem inúteis!... É necessário que nos cérebros ocupados pelos longos canos de esgoto, pelas paredes das escolas, pelo asfalto e pelas práticas assistenciais, entre o zumbido dos insectos, é necessário encher os ouvidos e os olhos de todos nós de coisas que sejam o início de um grande sonho. Alguém deve gritar que iremos construir as pirâmides!... Não interessa se as construiremos. É necessário alimentar o desejo. Devemos esticar a alma por todos os lados, como se fosse um lençol dilatável ao infinito... Se quiserem que o mundo evolua, temos de estar de mãos dadas, devemos misturar-nos, os que se definem como sãos e aqueles a quem chamam doentes. Ei!... Vocês!... Sãos!... O que significa a vossa sanidade?... Todos os olhos da humanidade estão a olhar para o precipício para o qual nos estamos todos a dirigir... A liberdade não serve para nada se não tiverem a coragem de nos olhar nos olhos, de comer connosco, de beber connosco, de dormir connosco. São os chamados sãos que têm levado o mundo à beira da catástrofe. Homem!... Escuta!... Em ti!... Água!... Fogo!... E depois... A cinza... E os ossos dentro da cinza. Os ossos e a cinza!... Onde estou, quando não estou, nem na realidade, nem na imaginação?... Estipulo um novo pacto com o mundo: que haja sol de noite e neve em Agosto. As coisas grandes acabam, são as pequenas que duram. A sociedade deve voltar a estar unida e não tão fragmentada. Seria suficiente observar a natureza para perceber que a vida é simples, que é necessário retornar ao ponto anterior onde enveredámos pelo caminho errado... É necessário regressar às bases fundamentais da vida, sem sujar a água!... Que raça de mundo é este, onde é um louco que vos diz que devem ter vergonha?... Música agora!... (Esqueci-me desta...) Oh mãe!... Oh mãe!... O ar é uma coisa ligeira que gira em torno da cabeça e que se torna mais claro quando ris...»

- É o discurso de Domenico, no topo do cavalo de bronze, antes de se regar com gasolina e lançar fogo a si próprio?

- Mas ele não fala, António. Ele grita.

- Domenico está cheio de frio.

- As pessoas, paradas na escadaria, debaixo das arcadas de pedra, não parecem ter frio.

- Uma gorda com um capacetezito de mota, com as pernas enroladas num cobertor.

- Velhos, jovens, pessoas de meia idade...

- Um louco de pijama. Uma freira. O cão.

- Uma rapariga com um colete de pele, collants castanhos e sandálias de salto alto.

- Uma gordinha de totós e sorriso alvo.

- Todos parecem estar tão sós.

- «Non siamo matti siamo seri» - é o que está escrito nas bandeirinhas atrás.

- Não somos loucos. Somos sérios.

- Trocaste portanto a última frase por qualquer coisa que era: ««Mãe, quando tu ris o ar fica mais ligeiro em roda da tua testa e parece que à volta tudo aclara»?... Mas pode dizer-se que o essencial ficou lá, na tua memória, Maria do Mar.

- Sim, pode. Mas o movimento é diferente.

- Mas, no caso de: «Não posso viver simultaneamente na minha cabeça e no meu corpo.» e: «Onde estou, quando não estou, nem na realidade, nem na minha imaginação?» é muito curioso. Fizeste uma espécie de cruzamento quiasmático entre as duas frases, e trocaste tudo.

- E a que me tilintou na cabeça com um som de Fernando Pessoa, nem sequer foi a primeira, como vim a acreditar depois mais tarde... Foi a segunda... Primeiro procurei-a e, por fim, passados uns dias, transformei-a... Sem querer, claro...

- Acoplaste cabeça com imaginação, e realidade com corpo?

- Exacto. Do que me lembrava era: «Onde estou, se não estou, nem na minha cabeça, nem no meu corpo?»

- E o discurso de Verónica?

- Eis o discurso de Verónica, na trigésima nona sessão com a Gisela Pankow. Vou traduzir do francês: «Não posso viver ao mesmo tempo dentro da minha cabeça e dentro do meu corpo. É por isso que não consigo ser uma só pessoa. Quando estou dentro da minha cabeça, esqueço-me imediatamente do meu corpo. (Silêncio.) Tudo depende da atmosfera em que me encontro. (Silêncio.) Sou capaz de sentir uma multidão de coisas ao mesmo tempo. Sou incapaz de perceber quem sou. (Silêncio.) É possível que eu possa fazer qualquer coisa. Eu sou a coisa que eu vejo. Mas essa qualquer coisa pode viver ou ser apenas um objecto. É por isso que me sinto sempre cansada. (Silêncio.) Tudo me interessa. Não há nada que não me interesse. (Silêncio.) Eu não estou morta. Eu estou viva, você sabe. O mais belo dia da minha vida foi o dia em que se passou o seguinte. Nós tínhamos mudado os móveis e, sobre um móvel, vi esgueirar-se um caranguejo azul. Tive a impressão que vivia dentro do caranguejo azul. Os seus movimentos eram extraordinários. (Silêncio.) A minha mãe, muito tempo depois, dizia que nunca vira os meus olhos brilhar daquela maneira. (Silêncio.) O seu corpo vibrava todo inteiro. Oh!... E aquelas pinças maravilhosas!... Como ele as manejava!... Formidáveis. (Silêncio.) Não. Eu não sou uma morta. (Silêncio.) O meu séquito pode destruir-me. É por isso que me acontece ter este aspecto bizarro. Quando a atmosfera que me rodeia é boa, sou transformada de um só golpe. (Silêncio.) Um dia o meu pai bateu assustadoramente no meu irmão. O meu pai não sabia o que fazia. O seu pai também batia. Eu detesto o meu pai porque ele bateu no meu irmão até ao sangue com uma correia de nylon. (Silêncio.) É perigoso irritar a minha família. Eles tornam-se perigosos. (Silêncio.) Eu tenho medo do meu pai. E no entanto, era a mim que ele preferia.»

- Impressionante... E o caranguejo azul... Mas qual de nós, qual de nós será realmente capaz de perceber quem realmente é?

- Hei-de trazer-te um outro discurso, tão impressionante como este.

- E qual de nós não se transforma de um só golpe, quando a atmosfera é boa?

- É impossível não gostar de Verónica, é impossível não ficar próximo dela.

- Mas ela passa da cabeça para o corpo, e do corpo para a cabeça, enquanto tu, Maria do Mar, quando dizes que não estás, nem no teu corpo, nem na tua cabeça, na verdade, sem querer, dizes que não estás em lado nenhum.

- É.

- Essa maldita linha de abolição... é insuportável para quem a contempla.

- Não posso parar, António.

- Obrigas-me a sair desta casa.

- Não olhes para mim. Até o nome é expressivo, já reparaste? Verónica.

- Não podes dizer qualquer coisa?

- Que queres que diga? Sou só mais um desses miseráveis que não conseguem parar.

- Que faças uma promessa.

- Não posso.

- Então, que procuras?

- Esse lençol dilatável ao infinito, essa alma sem limites. Porque eu já lhe toquei, António... Já vivi lá. Um curto tempo, sim, mas já singrei nessa nave... O tempo é cada vez mais curto... Pergunto-me... porque é que o tempo é cada vez mais curto?... Porque é que o voo é cada vez mais breve?... Em vez de avançar, parece que ando para trás... E é verdade... Hoje o primeiro sobrevoo parece-se mais com uma queda infinita, sem graça, nem som... Lanço-me - e logo caio. Mas eu hei-de reencontrá-las, essas sensações perdidas, esse ecstazy e, mais do que tudo, essa vida subatómica. Não preciso de mais nada. Apenas dessa velocidade e desse calor, dessa respiração infinita.

- É por isto que arriscas a própria vida, Maria do Mar? É por isso que deitas tudo a perder? Não compreendo.

- Prometo. Trago-te amanhã o segundo discurso de Verónica.

- Amanhã é possível que já não me encontres. Vou-me deitar.


Tarkovski, «Nostalghia» (1983)