XII - O excesso


Enquanto construíamos os adereços para colocar sobre o corpo da Maria do Mar, conversávamos, prolongando os nossos diálogos, quem sabe, até ao infinito.

- Para quê fazer isto, Maria? Não achas que estarás a repetir outras coisas?

Usávamos arames, caricas, fitas, penachos, tiras de tecido , missangas, contas de vidro, ráfia, tintas fortes e diversos cintos e braceletes - segundo os desenhos da Maria do Mar. 

- Para quê?... Perguntas-me para quê?...

- Pergunto-te para quê.

- Diz-me, porque hei-de eu preocupar-me com isso?

- Para quê, pergunto, fazer uma coisa - se essa coisa já existe?

- António, e as multiplicidades? E as nuvens? Só pode haver um malmequer na pradaria? Um malmequer de cada vez na pradaria, porque tudo o resto está a mais e não tem sentido? As estrelas chegam uma por uma ao céu. Só existe um casal de cada espécie, na Arca de Noé. Mas isto nem sequer existe ainda - nada disto ainda existe. Se nada fizeres, que diferença fará morrer ou não morrer?

- O que é que uma coisa tem a ver com a outra? Como é que saltas dos malmequeres para a inexistência das coisas que estão por inventar e daí para a diferença entre a vida e a morte?

- Queres que eu reflicta sobre a originalidade desta produção, certo? Como se isso fosse o principal critério de valor - a unicidade. Só um malmequer. Só uma árvore no meio do campo. Só um elemento de cada espécie, o suficiente para fazer a diferença. A questão é que não me interessa que isto exista ou não exista, mesmo que por acaso não exista. Esse não é o critério. Sempre, numa dada altura, todos tendem a fazer as mesmas coisas. Será sempre uma questão. O pensamento pensa, ou é alguém que pensa? A arte faz-se, ou é alguém que a faz? Criamos um movimento, ou somos movidos por ele? A única coisa que me interessa é a diferença entre a vida e a morte. De certo modo, é bastante mais básico... Falas como se a originalidade pudesse ser um projecto, uma intenção... Como se um homem não estivesse apenas, como todos os outros homens, numa encruzilhada... A meio de um caminho que se faz com ele, mas não por ele... Como se não houvesse esse ritmo supra-humano da matéria, do cosmos, de outras forças... Como se uma poderosa vida não-orgânica não nos varresse a alma a toda a hora... (Essa sim, porventura original...) Que queres, António? Não tenho qualquer aspiração à originalidade.

Cada adereço era uma extensão rítmica do corpo. A saia de fitas que se abriria na dança, como um guarda-sol. Em vários pontos do corpo, os penachos pendentes transformavam-se em corolas abertas de flores, chapéus que giravam. As braceletes que se colocavam nos tornozelos, nos pulsos, nos antebraços, nos joelhos. Delas poderiam pender fitas com contas que se abririam como discos voadores ao ritmo dos passos, chocalhando. Um movimento dos braços não seria apenas um movimento, mas um instrumento de percussão. Por todo o lado, volantes. Havia uma ebriedade na construção destes adereços, um excesso surreal. Coroa sobre coroa. Cinto sobre cinto. Bracelete sobre bracelete. Guizos. Chocalhos. Extensões de membros. Contas. Missangas. Pequenos varões articulados como chapéus de chuva.

- Já pensaste, pelo contrário, que escapar à originalidade talvez nem sequer seja possível, muito menos viável?


- Percebo-te. Em certa medida, concordo que a originalidade nunca poderá ser uma intenção, um projecto. É óbvio... soará sempre artificial, a pastiche, a número de circo. Mas não concordo com essa abolição do singular, do génio interior, do demónio vivo.

- Exactidão. Só exactidão. To thine own self be true. Mas é mais do que uma questão de mera verdade - produzir exactamente, fazer uma produção exacta. É mais difícil do que qualquer virtuosismo técnico. Talvez porque implique uma ética do rigor. Rigor da percepção que se desfaz continuamente, desfocando, focando, raspando, contornando, contorcendo, mudando sempre de posição, de escala, de densidade, de gravidade. Rigor que obriga a parar o fluxo do pensamento e a cortá-lo como quem usa uma lâmina, sem piedade, de um golpe. O rigor é muito difícil - quase impossível... Talvez seja humanamente impossível.

Víamos durante horas tudo o que encontrávamos sobre danças tribais. As mulheres Zulu. Os Yoruba. Os Masai. Os Nguni. Os Ga. Os Xhosa...  A Maria do Mar podia pegar depois numa coisa dos Buraka Som Sistema, uma coisa de certo modo trivial, como «We stand up all night», e transformar aquele ritmo em transe. Os batimentos dos pés, os ritmos contínuos e diferentes que arrastavam sucessivamente o corpo, como as chuvas arrastam as terras, como um abalo faz oscilar todo o solo, o ritmo galgava a consciência como uma maré cheia, como um ecstazy, como um álcool. Um membro que se agitava já não era parte do corpo, mas uma estepe varrida por um vento, uma corrente de oceano, arrastando o fundo do mundo. As fitas que se abriam em discos, no topo da cabeça, nos tornozelos, nos pulsos, eram ventoínhas, volantes, tapetes, vassouras, balões mágicos de uma cegueira por alcançar. O corpo exausto, o corpo ardente, quente, húmido da cabeça aos pés, evaporado, continuava leve na sua percussão aérea para além dos joelhos e das pernas, sobrevoando o ritmo, como uma chama surda, imprevisível e incandescente. Até ao limite absoluto, até à inconsciência, ou até à queda - era preciso dançar. Mas não era o corpo que dançava. Sou testemunha. Era o ritmo que atravessava o corpo, pegando-lhe fogo de lés a lés.

- And it must follow, as the night the day, thou canst not be false to any man.

Fazíamos furos com um estilete em cada carica, de modo a fazê-las passar por vários arames que depois seriam presos em braceletes ao nível dos tornozelos e dos pulsos, numa estrutura radial.

- Continuo, Maria do Mar, a pensar que isto é tudo um pouco selvagem, tudo o contrário dessoutro projecto de frugalidade, que tanto amas.

- O excesso tem de ir por algum lado, António.


XI - Um Deus com olhos



- Danças, se não podes falar com Deus?

- Não concordas que é uma boa alternativa?

A Maria do Mar lavava a loiça em água quente, enquanto eu cortava o feijão verde que tínhamos acabado de colher na horta.

Tanto o som da água quente a correr como o perfume do feijão verde cortado nos davam uma sensação de paz, de abundância, de plenitude, de eternidade.

- É evidente que não estás a dançar para nós. Não estás a dançar para ninguém, aliás. Mas acreditas que Deus te vê quando danças, Maria?

- Se Deus me vê!... - exclama ela com um riso claro e solto, ao mesmo tempo que se volta para trás esquecendo-se da loiça, da água corrente, da espuma, de tudo.

- Como és humano, António!

- Estou apenas a fazer um paralelo, Maria. Se os que falam acreditam que são ouvidos, porque é que os que dançam não acreditam que são vistos?

- Há mais coisas na minha alma do que aquelas que cabem na tua imaginação, meu querido amigo...

- Então?...

Estávamos ali entre os azulejinhos brilhantes da grande cozinha, os azulejos pequenos, azuis e brancos, e nós, as duas incógnitas, as duas figuras ténues no fundo quadriculado, ardente e brilhante.

- Não posso dizê-lo... Se Deus me vê... Que humano que é ver!... Um Deus com olhos, um Deus todo olhos, quem sabe?... Olhos por todo o lado, até por baixo dos pés!... Mas agora este Deus também tem pés!... Tem costas, tem frente e trás!... E talvez uma barriga, um sexo e um cu... Ou vários sexos... Quantos dedos? Quantas mãos? Quantas bocas? Quantos cérebros? Quantas espinhas no centro dos mil corpos?... Que cabelos por todo o lado, como florestas, como estepes cobertas de tojo, de cactos e de flores? Que caudas de leão, que asas, que bicos de águias? Que olhos penetrantes de coruja demasiado perspicaz e supra-humana? Queres que enlouqueça aqui mesmo, só de imaginar um Deus que vê?

- Maria do Mar, acho melhor concentrares-te na loiça, enquanto eu acabo o feijão verde...

- De qualquer modo... - continuou a Maria, colocando as mãos na água - ...talvez seja absurdo, porque não imagino nada... - não sou capaz... - mas é para Ele que eu danço.




Hermes derrubando Argos Panoptes, século V a.C.




X - Danças




Montar um ovo de gaze no andar superior da casa de Maria do Mar foi das coisas mais tremendas que realizámos.

Primeiro, a estrutura, com finas calhas de alumínio e arame.

Custou-nos várias semanas, imenso dinheiro - e uma enorme frustração.

Nenhum de nós tem espírito de engenheiro, a todos falta uma espécie de pragmatismo elementar. Porque a estrutura do ovo era uma coisa enorme, altíssima, mas tinha de ter um espaço bastante livre de mais ou menos um metro a partir da altura da cintura de Maria do Mar. Porquê? Será fácil perceber porquê.

Depois foi preciso gaze. Metros e metros e metros de gaze. Nisto eu e a Maria do Mar não podíamos estar sozinhos. A Francisca e o Artur B. tinham de nos ajudar, como dois dançarinos invisíveis mas fulcrais, perfeitamente articulados com o restante movimento da cena.

Na verdade, ambos constituíam o duplo par de Maria do Mar, mas um par não amigável, implacável. Eram como a influência da lua sobre as marés. Um facto inexorável. Uma força cega, à semelhança da morte e do destino.

E depois as lâminas, as lâminas realmente afiadas com que Maria do Mar iria dançar, uma em cada mão. Essas lâminas é que seriam, por assim dizer, os únicos bailarinos visíveis. O seu movimento, o seu traçado, o seu estertor e a sua agitação seriam a única dança capturável pela visão. E claro, o carril circular à mesma altura desse espaço de um metro, o carril que tivemos de montar em torno do nosso ovo, a uma distância exacta, cuja medida só descobrimos ao fim de várias tentativas.

A Maria do Mar entrava dentro do ovo onde caberiam mais dez pessoas, descalça e vestida de branco, para que a sua figura se visse o menos possível atrás da gaze. E as mãos e os pés nus e o rosto descoberto também eram pintados de branco, pela mesma razão. O sítio por onde entrava era selado e o Artur B., fora do campo de visão da câmara, segurava o suporte do rolo de gaze que a Francisca teria de desenrolar.

Começávamos ao som do Improviso de Schubert em Sol bemol Maior, tocado ao piano pelo Dinu Lipatti.

A Maria, com as duas lâminas nas mãos, o corpo rígido, os braços levantados e com movimentos espasmódicos, difíceis - dir-se-ia, involuntários, como se as mãos não lhe pertencessem, ou já não soubesse utilizá-las -, ia rasgando a gaze, abrindo um sulco irregular e tortuoso, um sulco que era quase imediatamente coberto pela Francisca e pelo Artur que caminhavam atrás, com o rolo de gaze - mas esta segunda operação não se via.

Dávamos muitas voltas ao mesmo ovo sempre selado, sempre branco, sempre encerrado.

O ovo ficava sempre igual a si mesmo, intacto e indiferente.

Só no fim da música teríamos uma imagem inteira dele - enorme, imóvel, inanimado, silencioso.

Porque é que eram tão estranhos aqueles movimentos das mãos de Maria Mar, segurando nas lâminas, rasgando a gaze?

Era como se ela nunca tivesse tido mãos, como se as usasse pela primeira vez. Sobressaía desse movimento uma pura mecânica não-humana do corpo, afim desse desencontro de movimentos que encontramos nos corpos das crianças muito pequenas, quando querem usar os braços e as pernas e os agitam derrubando as coisas em vez de as agarrar. E era como se uma intensidade desproporcionada corresse naquele movimento, que o fazia vacilar e tremer por todos os lados. A todo o momento tínhamos receio de uma desintegração, de uma queda, ou de um esboroamento, o que chegou a acontecer, de facto, quando a Maria do Mar caía, ou a Francisca caía, ou eu caía.

De resto havia qualquer coisa na crispação dos movimentos da Maria ou naquela repetição, não sei precisamente, talvez na circularidade implacável do nosso trajecto, que me deixava em lágrimas. Em cem tentativas, é possível que tenhamos salvado vinte. Dessas, se conseguimos escolher uma, foi uma sorte. Mas é tão estranho que eu chorasse sempre, independentemente do juízo posterior da Maria do Mar. Nem sequer sei porque é que as lágrimas me caíam, se estava tão concentrado em conduzir a câmara. E nem pensava em mais nada senão nisso - acompanhar aquele movimento contínuo, sem paragens, o que era extremamente difícil. Conseguir não tropeçar nos pés.

Mas talvez fosse por outra coisa, talvez apenas por estarmos ali.

A maioria das tentativas eram interrompidas porque a Maria do Mar sentia que tinha perdido aquilo que ela chamava «a linha» e que eu entendia que fosse a velocidade e a tensão exactas da linha da melodia, que ela percorria no chão com os pés, que levavam o corpo. Por vezes a Maria do Mar perdia o «eixo», mas o eixo era uma coisa totalmente diferente, porventura uma força numa posição perpendicular ao plano da linha. A meu pedido, a Maria explicou-me um dia que o eixo era como uma espécie de cabo invisível que a deixava pendurada do alto, um ponto algures nas nuvens, nas estrelas, ou mesmo num coração invisível do universo, uma coisa fortíssima que a suspendia pelo peito e pela garganta, e que também doía. Porque a melodia estava no chão, enquanto aqueles acordes quebrados que tecem uma pulsação e um desespero interior ao canto, um movimento contínuo e uma agitação perpétua, na mão direita do pianista, esses acordes estavam nas duas lâminas que cortavam a gaze. Porque todo o corpo da Maria do Mar estava como que inanimado, rígido, por assim dizer, preso, e a melodia era um tapete voador ou talvez um vento em que os pés se montavam, era um vento que seguia rente ao solo e que arrastava tudo o resto, enquanto o desespero transbordava num outro patamar paradoxal, ao nível do coração nos nossos peitos, ao nível das lâminas cortando a gaze - entre a crispação e a leveza.