V - Átomos do infinito




Como é que algum dia poderei compreender a Maria do Mar?

Nunca compreendi a sua bissexualidade inoperante, como não compreendi a articulação entre o primeiro e o segundo andar desta casa, como jamais compreenderei o seu suicídio.

É possível que a minha incompreensão tenha raiz mais funda na incapacidade de perdoar, mas isso é uma outra história. 

A história longa e torturada do meu desgosto de amor por F. de Riverday.

Mas é também possível que toda a sua incoerência, toda a sua loucura, todo o deserto malsão do seu pensamento fosse afinal o lastro inevitável e maldito de uma velha tragédia familiar, muda e oculta, que nela enxertara (como tantas vezes acontece) um destes terríveis enxertos metidos na alma do modo mais tremendo e mais assustador, isto é - um elemento íntimo e fantasmático obscuramente impresso por meios diabólicos e imposto com a força inabalável de um trilho automático e incompleto em busca do seu fim ou da sua interrupção, como um desabamento de terras. 

Havia todas essas histórias, essas vidas acabadas que se tinham perdido como letras apagadas em papéis gastos. Um avô que se suicidara. Um tio. Outros que o tinham tentado. Aquele que enlouquecera. Outro que fugira. Uma rapariga que estudara às escondidas. Uma velha senhora que se especializara em Camões em Paris, antes de se casar com um homem vinte anos mais novo. Algumas mulheres invulgares. Homens desesperados. Gente desigual entre si. O pai violento que andara cinco anos desaparecido numa das grandes guerras e que voltara semi-louco. Os que abusavam do álcool. Uma menina que nascera fora do casamento. As fortunas que tinham ruído, no meio da loucura. Os sobreviventes.

Quem é que dizia: «A minha ferida existia antes de mim. Eu nasci para a encarnar?»

Talvez o que imperasse na Maria do Mar fosse afinal esta pujança inorgânica da vida intergeracional que persegue com um movimento próprio esses objectivos difíceis e inabarcáveis que suplantam os do indivíduo sem deixarem de ser singulares, objectivos que não deixarão nunca de ser específicos e perfeitamente determinados, apesar da aparente obscuridade em que se apresentam a nós, os pequenos átomos do infinito. 

Talvez a Maria do Mar, por motivos que permanecerão para sempre indestrinçáveis, abrisse espaço a esta peculiar multidão. Porque qualquer coisa se tentava fazer na Maria do Mar - e isto era certo, visível, inegável, e eu, António Pizarro, conseguia ver isto nesta casa. Era uma coisa fortíssima que tentava vir à tona, em busca de afirmação, e que disparava em mil direcções no meio de forças contrárias e possivelmente incompatíveis. 

Talvez... Talvez esta coisa da ordem do inominável fosse afinal o que justificava a quase incompossibilidade entre os dois andares da casa, por um lado, ou a qualidade desconhecida do desespero que a levara à morte, por outro.




Tarkovsky, «O Espelho» (1975)

IV - O sono é um anjo





Por tudo isto nós dormíamos no primeiro andar e não, como seria de esperar, no segundo.

De madrugada, um pouco antes do sol nascer, nesse momento em que já cantaram dois ou três galos, ora aqui, ora ali, em casas distantes, pressentindo ou percebendo os primeiros raios de luz que para nós os humanos são imperceptíveis, era esse o momento predilecto para a Maria se levantar. 

Pois a Maria gostava de se levantar ainda de noite e de sentir avançar, como a franja lenta do movimento das marés, a suavidade do lusco-fusco em que se desfaz a escuridão, antes do sol nascer.

«Cada hora do dia tem o seu timbre, a sua luz própria. Conforme muda a inclinação dos raios de sol, tudo muda. Como quando transpomos um tema musical para uma outra tonalidade. Ou quando viaja uma melodia entre instrumentos de timbre diferente. Não se pode perder nenhuma hora do dia. Cada perda é como uma vida que nos seja roubada. Já a noite... A noite é sempre a noite. Sempre igual a si própria. Uma noite de Inverno. Uma noite de Verão. Uma noite de lua cheia. Uma noite gelada. Diferente apenas pelo calor, pela lua ou pela mudança das estações. A noite não varia de hora a hora, minuto a minuto. Mas o dia, não se pode perder nem um raio de luz, ou o dia passa-nos ao lado.»

Por isso a Maria do Mar se levantava antes de todos nós, ainda de noite. Fazia religiosamente a sua cama, lavava-se, penteava-se, vestia-se e podíamos ouvi-la em breve na cozinha, a preparar uma deliciosa refeição. Como evitaríamos imitá-la? Num dia a Maria do Mar fazia panquecas, noutro scones, noutro tostas, noutro bolo ou pão caseiro e, se o dia anterior fora esforçado na horta ou no pomar, havia invariavelmente ovos com bacon e com salsichas. E havia ainda leite, chocolate, café, sumos de frutas, variando conforme a época do ano... E a sua alegria era contagiante, ninguém conseguia ficar indiferente. 

De resto, quem se atrevia a apresentar-se de pijama, de tal modo a mesa era bem posta com uma toalha esticada e impecável?

A sensação seria igual a estar de cuecas na praia.

«Não há suavidade como a do amanhecer. Não há entusiasmo nem esperança como os da manhã. A humidade que sobe da terra perfuma o ar com uma tal intensidade que não é equiparável a mais coisa nenhuma. E tudo o que é verde respira, respira amplamente, com uma amplitude que não irá nunca mais repetir-se, durante o dia. Como se todo o mundo viesse lavado, purificado pela água e pelo orvalho, como se até as pedras e as grandes rochas respirassem. Que plenitude!... Como queres que eu perca este momento? Preciso de me deixar contagiar, profundamente.»

Se estava sol comíamos no terraço, eu, a Maria do Mar, a Francisca, o Orlando, o Artur e A.

Mas nem sempre estávamos todos.

Eu podia observar que a Maria do Mar, ainda que não falasse com Deus, vivia o dia em acção de graças. Se no segundo andar toda a montagem das performances e das lonas e algerozes para fazer correr as águas da chuva se assemelhava a um engenho da loucura, aqui no primeiro andar toda a organização metódica dos objectos necessários, a frugalidade, o ascetismo, o cuidado com que cada enquadramento em cada parede tinha sido arranjado de modo a proporcionar uma visão única, equilibrada, vibrante e pacífica, o cheiro a cera do soalho e a limpeza meticulosa que se exalava de cada canto, tudo isto me fazia pensar numa outra personalidade, quase oposta à primeira.

Porque, para a Maria do Mar, a abundância nunca deixava de a espantar. Que houvesse, nas prateleiras dos supermercados, não um único tipo de queijo, mas camembert, brie, mozarella, parmesão, ricotta, requeijão, queijo fresco, flamengo, gruyére, queijo da serra, queijo da ilha, queijo de São Miguel, de mistura, de cabra, de vaca, e enfim, que fossem todos tão deliciosos, que não houvesse apenas pêras, maçãs, mas laranjas, limões, tangerinas, romãs, ameixas, uvas, castanhas, ananás, abacate, lichias, mangas, morangos, framboesas, amoras, mirtillos, pêssegos, paraguaios, bananas, melão, quiwis... Para não falar de todos os tipos de legumes, verdes, vermelhos, brancos, laranjas, e dos diferentes pães, das bolachas, dos cafés, dos chás, das especiarias, dos leites, dos iogurtes, das natas, das farinhas, dos azeites, óleos e vinagres, dos açúcares, dos arrozes, das massas, dos enlatados... 

A Maria dizia-me que a haver vidas anteriores ela devia ter andado descalça em todas elas e que devia ter passado muita fome, ou ter andado fugida numa guerra, porque, mesmo sem saber rezar, depois da mesa posta nunca podia conter totalmente, por um lado, a perplexidade, e, por outro, a gratidão.

«O sol do meio-dia é como o som de um trompete em fortíssimo, metalizado e agreste. O sol a pique só é bom para uma coisa - a sesta. Mas já o entardecer tem exactamente o timbre de um quarteto de cordas, aberto a infinitas possibilidades, aberto a uma gama infinita, dentro de uma comum sensualidade. A tarde é um leque infinito. E o segundo lusco-fusco, breve e mágico, como é inenarrável!... O segundo lusco-fusco é de novo um pico, um pico de intensidade, mas com a nostalgia impregnada dessa angústia de nos mergulhar tão rapidamente na noite, na escuridão.»

O sono é um anjo. - dizia a Maria do Mar.





Tarkovski, «Infância de Ivan» (1969)