Manifesto a favor da irrelevância dos títulos - I



- Não, Maria do Mar. Terás de concordar com isto. Um manifesto cujo propósito não seja real - isto é, exequível -, não é um manifesto. Poderás chamar-lhe «gaguez», por exemplo, mas não «manifesto».

Sentado num pequeníssimo banco de madeira, António Pizarro concentrava-se na tarefa minuciosa de arrancar ervas daninhas. Era necessário encontrar o ponto preciso da ligação entre a raiz e o caule, agitar um pouco, de modo a que terra se soltasse das franjas subterrâneas, e tirar a planta toda inteira.

- «Gaguez pela irrelevância dos títulos».

Maria do Mar estava sentada de pernas cruzadas no caminho de pedras largas que cortava a horta em oito rectângulos iguais, bem desenhados.

- Como estão quentes estas pedras.

Era o calor de Julho.

O calor de Julho acumulava-se nas pedras e passava através do bordado inglês para a sua pele e para a sua carne, num fluxo de sensualidade em que se combinavam, de um modo esfumado e sumamente agradável, o calor, o cheiro da terra e das ervas esmagadas, o chilrear e os gritos dos pássaros e os sons indistintos que se esbatiam nos campos desertos.

- Que cúpula, o céu!...

Os dedos de António Pizarro estavam cheios de terra. No final da tarde, se as quisesse ter limpas, teria de esfregar longamente as unhas com uma escova.

- A gaguez, se for suave, pode ser tão atraente. E a combinação entre gaguez e inteligência é praticamente irresistível. Lembro-me de alguém assim, que me provocou uma quase paixão pela mistura destes dois elementos explosivos. Ou talvez não... Parece que não me lembro... É mais fácil imaginar do que recordar. Lembro-me apenas que houve alguém que era muito inteligente e que gaguejava e que por isso mesmo me fascinou. Isto será pelo menos certo, creio. Mas quem? Se me impressionou tanto, não seria natural que me lembrasse? Não é incrível como nos esquecemos de quase tudo? Fico chocada quando realmente me apercebo de que não me lembro em pormenor de nada do que fiz há três dias atrás, e em que sequência. Sei apenas que fiz aquilo que é normal fazer. Vivi segundo a ordem da normalidade. Ou seja, não aconteceu nada. «Gaguez pela irrelevância dos títulos». Mas que significado teria aqui a gaguez, António?

- Maria do Mar, estarás empenhada em torturar-me? Não sei porque falas tanto, quando podíamos estar simplesmente calados.

Nem parecia haver qualquer ligação necessária ou mesmo natural entre os dedos rápidos de António Pizarro e as suas mãos brancas e finas, femininas na pele e nas linhas mas viris na definição e na força dos nós, e a sua fala. Eram três planos agradavelmente fundidos e separados, como três vozes distintas numa mesma fuga.

- Além disso, quase me ofendes quando me perguntas por significados. Conheces-me. Sabes que sou um moralista. E para quê lamentares-te de uma faculdade? Ninguém se lamenta da imaginação, nem da razão, nem da faculdade de julgar.

- Ninguém a não ser Kant, António.

Maria do Mar esticou-se ao longo do caminho de pedras, como um gato, e rodou até ficar de barriga para baixo.

- Dificuldade em articular as palavras com o corpo... Um princípio de poesia.

Era tão bom apoiar uma das faces no antebraço - e sentir o calor a subir.


Tarkovsky, «Solaris»